Toda loucura será protegida?

Larissa Bortoni, Adriano Kakazu, Tadeu Sposito

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Ana Rosa é de Irecê, na Bahia. Mora, porém, em uma das cidades da periferia pobre de Brasília. Vive sozinha em uma casa de alvenaria de poucos cômodos. Casa de gente humilde, mas de paredes coloridas. Alegorias e adereços espalhados. Ana Rosa tem 49 anos. Teve três filhos. O mais velho foi levado embora pelo pai quando tinha dez anos. As duas moças ainda estão por perto, mas a visitas são pouco frequentes. Uma delas simplesmente não aparece.

Ana Rosa conta que essa filha não dá mais as caras porque não tem paciência para lidar com gente doida. Pois é. Ana Rosa se refere a si mesma como ‘gente doida’. Completamente louca. Reclama que os vizinhos a maltratam. Gritam: ‘lá vem a doida’, quando ela aparece na calçada.

Mas não é apenas a vizinhança que tira o sossego da baiana. O incômodo maior é a voz. Apesar de incontáveis vezes terem assegurado a ela que a voz não é real, mas sintoma da doença, Ana Rosa ainda duvida.

A crueldade da voz é muito superior à dos vizinhos ou parentes. A voz quer machucar Ana Rosa. Quer matar Ana Rosa. Seguindo as ordens dos murmúrios, a mulher atentou contra a própria existência mais de uma vez. Em uma delas, juntou comprimidos de remédios tarja-preta. Lavou a casa inteira porque não queria ser considerada uma dona de casa desleixada. Escolheu o sábado para engolir as pílulas, já que enterros aos domingos são mais concorridos. Tudo foi feito conforme ordenado pela voz.

Ana Rosa não morreu, mas apenas por obra do acaso. O namorado, que é pedreiro, tinha esquecido na casa dela algumas ferramentas e foi buscar, quando encontrou a baiana caída no chão, inconsciente e molhada de urina. Lá foi Ana Rosa mais uma vez para um hospital psiquiátrico.

Leonardo é um rapaz de 24 anos. Estatura média, um tanto acima do peso e olhar perdido. Nasceu na Ceilândia, outra cidade da periferia de Brasília. Ainda mora por lá junto com os pais, duas irmãs e um sobrinho. Tenta se formar em Gestão Empresarial, mas faltam algumas provas de recuperação e ele se queixa de não dar conta de se concentrar nos estudos. Credita aos efeitos dos remédios que toma. São vários ao longo do dia.

A esperança do moço é que as drogas ajudem a desarmar a enorme tristeza que tomou conta dele. Não consegue explicar de onde vem tamanha melancolia. Conta, apenas, que o desalento chega devagar até que o sufoca. É uma tristeza que não acaba mais. Aí, Leonardo se convence que só a morte pode dar jeito. Uma vez tentou se jogar de um viaduto. Salvo pelos bombeiros. Mais recentemente foi com um facão. Uma das irmãs o impediu.

Seu Abdias e dona Maria não entendem direito o que acontece com o filho caçula. Apesar de estarem pelejando para que Leonardo volte a ser o que era há bem pouco tempo, acham que ele não se empenha o suficiente na luta pela cura. Especulam que a depressão pode ser consequência da paixão de Leonardo pelos estudos. Certificados se espalham pelo quarto. Ao lado da cama o caderno no qual escreve poesias. A favorita é sobre a amada que partiu. Diz, no entanto, que o texto não é uma homenagem a uma mulher específica. Brinca que assim como Chico Buarque, não precisa de uma musa inspiradora.

Ana Rosa e Leonardo sofrem, assim como muitos outros brasileiros, com transtornos mentais. Quantos são no país? Nem o Ministério da Saúde sabe ao certo. Segundo o coordenador de Saúde Mental do ministério, Roberto Tykanori, estudos indicam que 2% a 3% da população sofrem com algum tipo de transtorno bastante grave. Neste cálculo, seriam cerca de seis milhões de pessoas.

toda loucura é resguardada

Ana Rosa e Leonardo são tratados em serviços comunitários e públicos de saúde mental. É o que prevê a Lei 10.216/2001, conhecida como Lei Antimanicomial: internação somente quando o tratamento fora do hospital se mostrar ineficaz. Prevê três situações para as internações: a voluntária, com o consentimento do paciente; a involuntária, sem consentimento e a pedido de outra pessoa; e a compulsória, que é determinada pela justiça.

Há regras, porém. As internações voluntárias e involuntárias devem ser autorizadas por médicos registrados no Conselho Regional de Medicina (CRM) do local onde se dará a internação. Além disso, no caso da involuntária, o responsável técnico do estabelecimento tem até 72 horas após a recepção do paciente para comunicar ao Ministério Público Estadual. A mesma providência deve ser adotada quando da alta hospitalar. Para ordenar uma internação compulsória, o juiz tem que levar em consideração as condições de segurança do estabelecimento, a proteção ao paciente e aos demais internados e funcionários.

Por conta da nova legislação, 70 mil leitos psiquiátricos foram fechados de 2001 até agora. A consequência, de acordo com Tykanori, foi um significativo aumento no número de atendimentos na rede comunitária de saúde pública. Em 2002, foram atendidos 400 mil cidadãos com transtornos psiquiátricos. Em 2010, foram 20 milhões de pacientes. Ele afirma que a mudança aconteceu porque o dinheiro antes concentrado para os hospitais é usado agora em uma ampla rede de atendimento.

Em substituição aos hospitais psiquiátricos, o Ministério da Saúde determinou, em 2002, a criação dos centros de atenção psicossocial. Os Caps são espaços para o acolhimento de pacientes com transtornos mentais, em tratamento não-hospitalar. A função é prestar assistência médica e psicológica para a reintegração dos doentes à sociedade. Dados do Ministério mostram que em setembro de 2014 havia 2155 centros instalados no país. Só para dar uma ideia do déficit que ainda persiste, o Brasil tem 5.564 municípios, mais que o dobro do que o número de Caps.

A Lei Antimanicomial tem defensores ardorosos, como Roberto Tykanori, para quem a mudança restituiu a cidadania aos brasileiros com transtornos mentais. Ele lembra que ao longo da história da humanidade as pessoas identificadas como doentes mentais eram automaticamente tachadas como ‘não gente’, perdendo todos os direitos e se tornando alvos de desrespeito.

O psiquiatra Augusto César de Farias Costa vai além. Diz que a mudança pôs fim à lógica de ocultar e excluir da sociedade os componentes do imaginário social sobre a loucura: irresponsabilidade, incapacidade e violência. O louco passou a ser exposto. O médico acrescenta que mais um ingrediente neste processo é o programa De Volta para Casa. Criado em 2003, prevê o pagamento de um auxílio financeiro (R$ 412,00 em setembro de 2014) aos pacientes psiquiátricos que ficaram internados por longos períodos. Augusto César elucida que ao ter uma renda o cidadão deixa de ser encarado pela família como um peso morto que só serve para dar despesa. Assim, é mais respeitado.

O médico psiquiatra Renato Cânfora apresenta outros benefícios na atual forma como os doentes psiquiátricos são tratados. Um deles é a possibilidade de a família também receber apoio nos centros de atendimento. Além disso, faz parte da terapia a participação em oficinas ocupacionais que habilitam o doente para uma atividade produtiva. Ele conta casos de alguns que após aprenderem a cozinhar, abriram restaurantes e outros que tornaram bons artesãos.

Apesar de defensor do tratamento longe dos manicômios, Cânfora aponta uma melhoria significativa na qualidade dos hospitais psiquiátricos nos últimos anos. Se até há pouco tempo, a lógica eram doentes andarilhando pelos corredores, apenas esperando pelas pílulas distribuídas à noite, os hospitais passaram a contar com outras modalidades terapêuticas, como as ocupacionais. Somado a isso, Cânfora esclarece que os remédios modernos estão muito mais eficientes.

Ao contrário do que muitos imaginam, os Caps, de acordo com Renato Cânfora, não substituem o atendimento emergenciais nos episódios de surto. Nestes momentos, como diz, os pacientes são conduzidos aos prontos-socorros de hospitais. Só depois da alta médica, que há o encaminhamento aos centros. Em outras situações, porém, o psiquiatra recomenda que a porta de entrada ao tratamento seja os centros de atenção psicossocial.

O espetáculo da loucura, não só no indivíduo isolado mas, e sobretudo, numa população de manicômio, é dos mais dolorosos e tristes espetáculos que se podem oferecer a quem ligeiramente meditar sobre os destinos. (Lima Barreto, em Cemitério dos Vivos)

Na lida diária com a realidade de um Caps estão Girlene Marcos Pinheiro e Márcia Kafuri. A primeira gerencia o centro de transtorno em Taguatinga, uma das cidades do Distrito Federal. Atende, atualmente, cerca de 470 pessoas, mas o regime é de portas abertas. Nos cinco dias úteis da semana, qualquer pessoa que procurar ajuda é acolhida. Márcia, por sua vez, responde pelo Caps Beija Flor, em Goiânia.

O objetivo do centro, como explica Girlene, é promover a reinserção social dos doentes. Para isso, a terapia começa tão logo o paciente é recebido. Há todo um estudo sobre a situação da pessoa – se trabalha, quantas internações, qual é a estrutura familiar, e por aí vai. Com esse levantamento pronto, é ofertada ao paciente uma série de recursos, além do próprio atendimento psiquiátrico.

Mas há problemas, admite Girlene. Um dos mais graves é que não há Caps em quantidade suficiente para acolher quem precisa. Por isso, muitos acabam não acessando o serviço. Uma pena, levando em consideração experiências positivas como o do Caps de Taguatinga, onde, conforme garante Girlene, pacientes com histórico de várias internações estão com a doença controlada.

No Caps Beija Flor, que funciona há onze anos, são atendidos trezentos pacientes. São pessoas que sofrem com transtornos mentais severos e persistentes. Todos passaram por longos períodos de internação. Márcia Kafuri se entusiasma com os resultados do tratamento. Diz que a melhora pode ser aferida por qualquer índice, mas que a principal é a reconquista da cidadania.

Se há falta de centros de atenção psicossocial, a carência é ainda maior quando se trata dos serviços residenciais terapêuticos, também previstos pela regulamentação da Lei Antimanicomial. São casas pensadas para abrigar os pacientes com transtornos mentais severos que perderam contato com a família e não tiveram para onde ir com o fechamento dos manicômios. São apenas 274 no Brasil. Em algumas regiões do país elas simplesmente não existem. É o caso da capital da República. Em toda região Norte há apenas uma residência terapêutica. Fica em Tocantins.

No Estado de Goiás, em compensação, há onze dessas casas. Duas delas ligadas ao Caps Beija Flor. Em uma das residências terapêuticas vivem sete mulheres, uma a menos do que o limite previsto pelo Ministério da Saúde.

Nessas casas não há médicos de plantão, nem enfermeiros, nem cadeados nas portas. Os moradores são atendidos por cuidadores que se revezam nas 24 horas por dia, nos sete dias semanais. Cada residência é ligada a um Caps. Os médicos e demais profissionais do Caps fazem visitas periódicas às residências, além de atenderem os pacientes nos próprios centros. Os pacientes que vivem nas residências terapêuticas têm autonomia para ir e vir. As portas estão abertas. Três das que moram na Residência Beija Flor estão com passagens compradas para conhecer Porto Seguro (BA).

Não quero, entretanto, morrer; queria outra vida, queria esquecer a que vivi, mesmo talvez com perda de certas boas qualidades que tenho, mas queria que ela fosse plácida, serena, medíocre e pacífica, como a de todos. Sairei desta catacumba, mas irei para a sala mortuária que é minha casa. (Lima Barreto, em Diário do Hospício)

Letícia tinha acabado de nascer, quando Cláudia foi internada pela primeira vez em um hospital psiquiátrico. Era quase uma menina: 19 anos. Gravidez complicada com quadro de pré-eclâmpsia. Psicose pós-parto. Tratada. Recebeu alta e foi para a casa. Uma nova gravidez. Desta vez do Lucas.

Mais uma pré-eclâmpsia. Mais uma psicose pós-parto. Mais uma internação. De lá para cá, nem se recorda de quantas vezes foi hospitalizada, mas sabe que passou mais tempo em hospitais psiquiátricos do que em casa. A fase agora é boa. Há nove meses está em tratamento domiciliar e longe das crises.

Lucas e Letícia se revezam nos cuidados com a mãe. Além do transtorno mental, Cláudia sofre de hipertensão e diabetes. Os filhos zelam para que os remédios não sejam esquecidos. Enquanto isso, tocam as próprias vidas. Apesar dos atropelos, os dois estão matriculados em universidade pública, em cursos concorridos. Cláudia é paciente de um psiquiatra particular. Nunca foi a um Caps e não reclama do tratamento recebido quando das internações.

toda loucura não é protegida

O aumento no número de atendimentos e as boas intenções do legislador não garantem apoio unânime para a Lei Antimanicomial. Do outro lado, está o presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), Antônio Geraldo. Para ele, o principal equívoco do programa de saúde mental adotado pelo Ministério da Saúde é a fundamentação em ideologia e não em dados comprovados cientificamente. O resultado, garante o médico, é que os doentes mentais não recebem na rede pública um tratamento da mesma qualidade da oferecida pela iniciativa privada.

O médico aponta uma série de problemas na política pública de cuidados aos doentes mentais. Começa com a dificuldade que os pacientes enfrentam para a marcação de consultas com psiquiatras em ambulatórios. Quando conseguem, há outros embaraços para obter tratamentos multidisciplinares, com psicólogos, nutricionistas e assistentes sociais.

Os problemas continuam, na análise do presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria, na obtenção dos medicamentos nas farmácias gratuitas – porque faltam remédios –, bem como na renovação das receitas médicas. O receituário deve ser substituído a cada dois meses.

Além disso, diz que não há médicos psiquiatras em todos os centros de atenção psicossocial e quando há, eles não atendem todos os dias da semana. Alega ainda que os Caps não podem substituir o sistema ambulatorial, pois, segundo Antônio Geraldo, eles não estão capacitados para atendimento de transtornos mais específicos, como os alimentares, déficit de atenção ou hiperatividade. Para o psiquiatra, os Caps deveriam cumprir o papel de atender os pacientes psicóticos egressos de internação, de forma a serem acompanhados para evitar um novo período no hospital.

Antônio Geraldo faz uma denúncia grave. Assegura que a extinção de leitos hospitalares, e não apenas na área da psiquiatria, somente trouxe benefícios ao sistema privado de saúde, que recebe essa demanda não atendida pelos hospitais públicos. Obviamente essa lógica só serve para os quem têm dinheiro. De acordo com o médico, há um exército de pacientes tirados dos hospitais psiquiátricos perambulando pelas ruas, trancado em casa, preso a correntes ou nas prisões.

Em tal estado de espírito, penetrado de um profundo niilismo intelectual, foi que penetrei no Hospício, pela primeira vez; e o grosso espetáculo doloroso da loucura mais arraigou no espírito essa concepção de um mundo brumoso, quase mergulhado nas trevas, sendo unicamente perceptível o sofrimento, a dor, a miséria, e a tristeza a envolver tudo, tristeza que nada pode espancar ou reduzir. Entretanto, pareceu-me que ver a vida assim era vê-la bela, pois acreditei que só a tristeza, só o sofrimento, só a dor faziam com que nós nos comunicássemos como o Logos, com a Origem das Coisas e de lá trouxéssemos alguma cousa Transcendente e Divina. (Lima Barreto, em Cemitério dos Vivos)

O escritor e poeta Ferreira Gullar teve dois filhos esquizofrênicos. Um deles, que tinha um quadro menos grave da doença, morreu de cirrose hepática. Outro, chamado Paulo, está em tratamento com remédios e mora no sítio de um amigo. Gullar nunca escondeu essa situação e também nunca se furtou às críticas à Lei Antimanicomial.

Na percepção de Gullar, a extinção dos leitos psiquiátricos não passa de mais um fator de apartação social. O poeta argumenta que as famílias endinheiradas continuam a internar os pacientes nos momentos de crise. Aos pobres, por outro lado, só resta deixar o doente em casa, correndo os riscos relacionados a surtos, ou mandá-los para a rua na base do ‘seja o que Deus quiser’. Ferreira Gullar vai além. Avalia que há uma intenção deliberada do movimento antimanicomial de demonizar os hospitais psiquiátricos. Não acha plausível a tese deste grupo de que o tratamento aos internos seja ou foi baseado em uma cultura de perversidade.

Médico e senador, Paulo Davim (PV-RN) também se aflige com o fechamento de hospitais psiquiátricos. Segundo ele, não é razoável a radicalização. Defende a necessidade de leitos psiquiátricos, apesar de admitir um sistema que não seja centrado em hospitais. Reforça que há patologias psiquiátricas que necessitam de um tipo de intervenção que não é oferecida pelos Caps. Nas crises psiquiátricas, o doente, como fala Davim, deve receber o tratamento adequado com a internação e o uso acertado de remédios. Só superados e controlados os surtos, que é possível o atendimento nos centros de atenção psicossocial. Teme o senador que, por falta de ter aonde ir, os loucos voltem a perambular pelas ruas, como acontecia no século XIX, antes da instalação de hospitais psiquiátricos no Brasil.

toda loucura é acompanhada

A própria Lei Antimanicomial dá ao Ministério Público a atribuição de acompanhar as internações involuntárias de pacientes com transtornos mentais. A função, porém, vai muito além. Com frequência os promotores públicos são chamados a intervir em casos de desrespeito aos direitos humanos de pacientes ainda internados em condições, para dizer o mínimo, inadequadas.

O que fazer nestes casos, principalmente quando ainda não há em todo o país uma estrutura pronta para receber os egressos dos manicômios, apesar de a lei ter mais de dez anos? A procuradora de justiça do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), Tânia Marchewka, gosta da legislação, mas está preocupada.

Considera que a lei não apenas redireciona o modelo de assistência à saúde dessas pessoas, como garante o exercício da cidadania a indivíduos que historicamente vivem à margem da sociedade. A mudança, para ela, é de toda ordem: social, médica, jurídica, política e o mais relevante – na vida real dessas pessoas.

O problema, aponta a procuradora, é fazer com que o direito dessa população seja respeitado de ponta a ponta do país. As diferenças regionais na implantação de programas como os Caps e as residências terapêuticas muito afligem Tânia Marchewka. Ela relata que ao mesmo tempo em que acompanha experiências de bastante sucesso, como as de Aracaju (SE), viu acontecer na Bahia pacientes soltos pelas ruas após a desinternação, simplesmente porque não tinham para onde ir. Assim, de acordo com ela, o Ministério Público tem atuado para garantir a assistência na forma prevista.

O papel dos procuradores é cobrar das autoridades públicas a estruturação dos centros de atenção psicossocial e das residências terapêuticas em número suficiente para toda a demanda. Junto a isso, continuar a acompanhar os hospitais psiquiátricos para evitar condições deploráveis.

Amparado pela Lei Antimanicomial, o promotor de Justiça de Goiás, Haroldo Caetano da Silva, foi um dos responsáveis pela implantação de um programa que mudou a maneira de tratamento dos doentes mentais que cometem crimes, mas que por força da doença não são capazes de entender a gravidade do ato. Em Goiás não há manicômios judiciários.

O promotor Haroldo Caetano explica que essas pessoas, quando reconhecidas como inimputáveis e assim sem capacidade penal, são incluídas no Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator (PAILI). Os cuidados médicos passam a ser prestados pela rede de atenção psicossocial. Se houver a necessidade de internação, a mesma acontecerá em leitos do Sistema Único de Saúde e a alta será determinada pelos médicos e não por juízes. Haroldo Caetano apenas lamenta que outros estados não tenham seguido esse modelo de tratamento aos loucos infratores.

toda loucura é biografada

A revolução tão substantiva no sistema de tratamento aos doentes mentais no Brasil não aconteceu da noite para o dia. É resultado de um processo iniciado no fim da década de 1970, com o Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental. Em 1987, foi fundado o Movimento Antimanicomial, com a proposta de unir profissionais e sociedade para enfrentar a forma como a loucura era tratada. O lema era “Por uma sociedade sem manicômios”. Até então, a questão psiquiátrica no Brasil era regulamentada por um decreto de 1934, baixado pelo presidente Getúlio Vargas.

O Decreto nº 24.559 determinava que os ‘psicopatas’ deveriam ser mantidos em estabelecimentos psiquiátricos públicos ou particulares, ou então ser cuidados pelas famílias. No entanto, mais de três doentes mentais não poderiam ficar em uma única casa. Também nos hospitais psiquiátricos poderiam ser admitidos os toxicômanos e intoxicados por bebidas inebriantes.

“O psicopata ou indivíduo suspeito que atentassem contra a própria vida ou a do alheio, perturbassem a ordem ou ofendessem a moral pública” deveriam, de acordo com o decreto, ser recolhidos a estabelecimento psiquiátrico. A internação poderia acontecer por ordem judicial ou de autoridade policial. Poderia também ser resultado do pedido do próprio paciente, de parente até quarto grau, tutor, ou ainda por algum interessado das relações do paciente. Em resumo, qualquer um podia internar o outro.

O resultado era que usualmente a internação era feita sem critério e, pior, podia servir como punição aos que não se adequassem à moral vigente. Assim é a história do Hospital Colônia, em Barbacena, criado em 1903 pelo governo do Estado de Minas Gerais para atender pessoas com doença mental. Entre os anos de 1930 e 1980 – 60 mil pessoas morreram naquele lugar.

A informação é da jornalista Daniela Arbex. Ela é autora do livro Holocausto Brasileiro, que traz a história do Hospital Colônia, palco de uma das mais cruéis agressões aos chamados loucos. Esses milhares de pessoas morreram de quê? Fome, frio, eletrochoque, abandono, tristeza. Daniela Arbex diz que os indivíduos chegavam ao Colônia para morrer. Abandonados pela família, pelo poder público, por todo mundo. Nos períodos de maior frio, havia registros de 16 mortos por dia. Todos doidos? Não. A jornalista estima que de cada dez pacientes, sete não sofriam de doenças mentais.

Na verdade, o hospital acabou sendo o destino de todos os tipos de indesejáveis sociais. Não só de Minas Gerais, mas de todo o país. As pessoas eram enviadas a Barbacena em vagões de carga – o trem de doido, que fazia uma viagem sem volta. Compara Arbex com o que aconteceu com os judeus levados aos campos de concentração nazistas.

Eram pessoas sem documentos. Negros. Pobres. Meninas que tinham perdido a virgindade antes do casamento. Gente que incomodava outras com mais poder. Maridos que silenciavam as mulheres para ficar com as amantes.

O Hospital Colônia continua aberto. Após a sociedade saber o que acontecia por trás dos muros, no entanto, a tragédia passou a ganhar traços mais suaves. Os responsáveis iniciais pelas denúncias foram o cineasta Helvécio Ratton, com o documentário Em nome da Razão, lançado em 1979, e o jornalista Hiram Firmino do Estado de Minas Gerais, que publicou uma série de reportagens sobre o hospital. Rebatizada de Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena, a unidade se adequou à Lei Antimanicomial.

Atende atualmente uma população estimada em 700 mil pessoas por ano, em diferentes especialidades. No entanto, guarda a história do passado. Ainda estão por lá cerca de 150 sobreviventes deste período. Vão morrer no hospital porque perderam todo e qualquer vínculo familiar e não têm condições de tratamento em residências terapêuticas.

Entrevista: Daniela Arbex
Jornalista e autora do livro 'Holocausto Brasileiro'

Foi neste contexto – de um lado o surgimento do Movimento Antimanicomial e de outro denúncias de genocídios em manicômios – que o então deputado federal por Minas Gerais, Paulo Delgado apresentou um projeto com para regulamentar os direitos da pessoa com transtornos mentais e a extinção progressiva dos manicômios no país. Isso em 1989.

Diante de tanta notícia e imagens de barbaridades nos hospitais psiquiátricos, a expectativa era que o projeto teria vida fácil no Congresso. Levou 12 anos para ser aprovado. Paulo Delgado acredita que o principal entrave foi cultural. A sociedade demorou a entender que os loucos não ficariam soltos pelas ruas. Além disso, houve um forte lobby dos negócios privados envolvendo os manicômios.

O ex-parlamentar lembra que a principal preocupação era dar cidadania ao doente mental. Esclarece que não se trata de uma lei médica, mas para garantir os direitos do indivíduo nos piores momentos da existência. Ressalta que a vida dos pacientes com transtornos mentais é tão dura, que a eles não é permitido nem ficar nervoso. O louco não pode ficar bravo ou revoltado, ou indignado. Tem sempre um que decreta: ah, você está nervoso, é! Ou pergunta: por que tão nervoso?

A lei, continua Paulo Delgado, também não é contrária aos medicamentos. Mesmo porque, como afirma, são os remédios adequados que permitem o tratamento em liberdade. A legislação não determina o fim da internação compulsória, mas essa decisão deixa de ser unilateral e unipessoal. O que a lei pretende é uma terapia multidisciplinar que assegure resultados mais satisfatórios nos cuidados aos pacientes.

Ele admite que há ainda muita incompreensão quanto à loucura. Postula que o poder público poderia explicar melhor o que são as doenças psiquiátricas, a exemplo do que acontece com doenças genéticas, como a Síndrome de Down. Até há bem pouco tempo, as pessoas com Down eram alvo de muito mais preconceito do que hoje. Algumas estão até em novelas da Rede Globo.

De cinco em cinco anos, Elizabeth de Souza passa por uma fase espiritual. O chamado, que martela os ouvidos, demanda que ela ajude os outros. Sai pelas ruas com esse propósito, mas a acolhida não é das melhores. Estava em Fortaleza na última vez que isso aconteceu. Uma amiga a botou para fora de casa.

Perambulou pelas ruas. A mala foi roubada. Deitava-se nos cantos, com frio e fome. Apenas a roupa do corpo. Por sorte, um dos filhos encontrou Elizabeth e a internou no Hospital São Vicente de Paulo, no Distrito Federal. Apanhou de outra paciente. Até o cordão da Nossa Senhora lhe foi arrancado do pescoço.

A mulher de 60 anos está há um ano em tratamento no Caps de Taguatinga (DF). A voz há tempos não buzina nos ouvidos. Pensa em pedir para ter alta. Elizabeth mora sozinha e garante que está se cuidando muito bem.

Lima Barreto é um escritor brasileiro nascido em 1881. Teve uma vida breve. Morreu aos 41 anos. Filho de gente pobre e mestiça, ficou órfão de mãe e viu o pai ser internado em um hospital de loucos. Por duas vezes, por causa do alcoolismo e depressão, foi parar em sanatórios.